A manhã vou pular a fogueira de São João. Pois a circunstância de vida sempre nos aproximaram, dando-me certeza de tratar-se do Padroeiro. Fui batizado numa catedral a ele consagrada. Mais tarde, como diplomata, servi sucessivamente junto à Ordem de São João de Malta, Rodes e Jerusalém, e no Quebec, cujo patrono é João Batista.
João tinha a premonição do Cristo. Era voz que clamava no deserto, era o anúncio da Verdade antes da Verdade, era o batismo com a água do Rio Jordão antes do batismo com o fogo do Espírito Santo, o precursor convicto daquele de quem não se consideraria digno sequer de “desatar os coturnos”.
Essa sensitividade já se prenunciava na gestação de ambos, quando Maria foi visitar sua prima Isabel, em gravidez alguns meses mais avançada, e o feto de João agitou-se em seu ventre, episódio que manifesta a sintonia, pré-existente à própria vida, entre aqueles seres que, algumas décadas depois irromperiam sincronizadamente, mas por impulsões genuínas, no plano da evolução espiritual. Jesus, por sua vez, reverenciou em João a grandeza: “…entre os nascidos de mulher, ninguém foi maior que João.”
Aquele homem que se vestia com peles de camelo e alimentava-se de mel e gafanhotos não se cansava de incomodar o poder terreno, repetindo a Herodes que a Lei, fosse judaica, fosse cristã, não lhe permitia esposar a mulher de seu irmão, mesmo – e sobretudo – sendo ele Herodes e ela Herodíades, Princesa da Judeia. Não é sem motivo que certos preceitos como que se cristalizam através das gerações. Matar a João viria a ser, para o tetrarca, um modo de compatibilizar consciência e comportamento. Viviam-se tempos em que se fazia da Lei judaica nada mais que pura retórica. Cristo não se cansava de repetir: “Se conheceis a verdade, por que não a praticais ? ” Ainda hoje, esse é o mundo. Constroem-se códigos morais, religiosos, éticos e jurídicos, mas o homem, com muita frequência, é intimamente elusivo àquilo que codifica.
No caso do direito, tem-se a impressão de haver mesmo reações químicas adversas entre a natureza humana e conquistas como o devido processo legal, base do Estado de direito. Sem mencionar as miríades de abusos de direito, de autoridade e de poder que se praticam nesse “Estado 2 de direito” à sombra da impunidade, ou os vícios que incidem sobre a apreciação das próprias controvérsias de mérito, nas quais está a essência da justiça.
Num mundo de duplas personalidades, de meias verdades, relativismos e falsidades, honremos nesse sábado ao Iocanaã, que veio prodigalizar virtude cada vez mais rara – a coragem moral – num momento da espiritualidade em que até os elementos da natureza se tomaram do pathos da vinda do Salvador, como fez crer magistralmente Oscar Wilde.
A coragem de dar nome aos bois, de pôr os pingos nos “is”, de falar “português claro”, de se expressar sem subterfúgios, de separar o trigo do joio, e de apontar na direção da Terra Prometida.
O martírio de João Batista é, a meu ver, depois daquele do próprio Jesus, o mais significativo da Cristandade. Com efeito, naquele ser, Salomé somente divisou a condição carnal, gestando em sua Dança dos Sete Véus a trama da tragédia.
A relação entre o mundo espiritual e o material ainda hoje é a mesma do enredo macabro de João Batista e Salomé. Com raras exceções, o primeiro somente encontra neste último um chão quando intervém um propósito material.
Por isso, ainda hoje, a certeza da vida eterna é a certeza da vitória do espírito sobre a matéria. Antevendo-a, reinterpretei, em “Timós”, o famoso episódio bíblico:
Então João Batista
Reimplantou a cabeça
Desembainhou a espada Decapitou Herodes.
Serviu sua cabeça
Numa bandeja prateada
A uma Salomé
Inda mais assombrada
Pergunto-me sempre se, ao ressuscitar, não foi o Cristo submetido a um novo e talvez insolúvel martírio, o de ver que o de dois mil anos atrás lhe vem sendo perpetrado a cada dia, assim como a santidade de João Batista é açoitada pela ambição e violência das salomés dos tempos.